sexta-feira, 27 de março de 2015

Cenas familiares

Fora da nossa casa.
Fora da nossa família.
Fora de nós.
Fora da nossa vida.
Há mais vida(s).
Não sendo as nossas, tornam-se familiares, como se afinal fizessem parte do nosso mundo.

Um vizinho leva o seu dálmata à rua. Vão envelhecendo os dois juntos, em cada passeio matinal.

Mãe e filha passeiam juntas de mão dada. Ambas adultas. A filha tem trissomia 21. Vejo-as quase sempre no mesmo sítio, a descer a mesma rua. Reparo na calma com que fazem aquele percurso, no crescendo dos cabelos brancos da mãe...pergunto-me onde irão...se um dia aquela menina adulta continuará a descer a mesma rua, com o mesmo ar sereno. Fico a pensar a quem dará a mão..

Reconheço a mulher, talvez da minha idade, ainda com os traços de menina que lhe ficaram duma anorexia severa. Já não é ruiva como nos tempos da faculdade. Mantém a pequena estatura a face fechada e olhar cabisbaixo. Lembro-me da alcunha que lhe davam, pelo ar de menino, ruivo e com sardas. Ainda penso para mim, vai ali o Tom Swayer.

A vizinha idosa cada vez mais curvada, deixa um balão preso na caixa do correio para a menina do 2º andar. Noto que as minhas cresceram o suficiente para não terem direito ao balão...Volta e meia pára e fica a falar do neto e do tempo que passa depressa e de como estão grandes as minhas meninas e pede para relembrar como se chamam e como eu me chamo. E nessas conversas sou também menina.

A senhora do lado de lá da rua estende a roupa na corda todos os dias, quase sempre à mesma hora. Começou por me cumprimentar não porque me conheça mas porque nos cruzamos há muitos anos. Um dia destes para além do bom dia, comentou que ainda se lembrava de me ver grávida e que agora já tinha umas meninas tão grandes. A mim parece-me parada no tempo, com o cabelo apanhado da mesma forma.

Nestas cenas familiares que se passam todos os dias à nossa volta, pouco vai mudando ou em pouco reparamos, até ao dia em que a cena de tão familiar que era, tão igual a si mesma, muda.

No dia em que na mesa do café já não se senta o mesmo senhor.
O dia em que o vizinho passeia sem o dálmata. Já lá vão uns 16 anos de passeios matinais...

Ao chegar a casa, ainda no carro, a R diz do nada "Mãe, achas que o dálmata já morreu?".
Tinha reparado no mesmo que eu.




Sem comentários :

Enviar um comentário